Fernanda França
Renoir

"Presépio"

“Dasdores (assim se chamavam as moças naquele tempo) sentia-se dividida entre a missa-do-galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado de meia-noite, e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.
É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.
Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar os doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para a sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. (...)
(...) Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas de casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior – é uma conspiradora – e sempre acha folga para pensar(...)” em algo mais.
(ANDRADE, Carlos Drummond., “Presépio” In. Contos de aprendiz, RJ:Civilização Brasileira, 2006)